O convite para o desfile de inverno 2024 da Balenciaga era uma caixa de papelão, igual às que a gente recebe pelo correio quando compramos alguma coisa pela internet. Dentro de cada uma – umas 800 no total –, tinha um objeto aleatório selecionado no E-bay pelo Demna em si.
Acho que todo mundo sabe, mas em todo caso: Demna é o diretor criativo da Balenciaga desde outubro de 2015. Faz quase 10 anos que ele está à frente da marca. Justamente por isso, o desfile ganhou um tom senão celebratório, com certeza ratificante.
Em uma mensagem de voz enviada aos convidados, o estilista fala que a coleção é sobre a estética que ele vem evoluindo ao longo dessa uma década. Diz ainda que é sobre se identificar e pertencer a essa estética e também que é sobre o tipo de moda que ele acredita.
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
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O desfile começa com uma série de looks inspirados em silhuetas, técnicas e modelos encontrados nos arquivos da maison. O primeiro deles, com bordados de onça, é uma versão modificada de um vestido de alta-costura do começo dos anos 1960. As principais diferenças estão nos volumes do quadril, feitos com ombreiras usadas na alfaiataria, e em que o veste.
O casting é o puro suco de Demna: idades variadas, físicos idem e aquele visual desarrumado, postura curvada, caminhar sem compostura, atitude irreverente e, contra umas das regras sagradas do manual de boas práticas para modelos, mascando chiclete.
Outros acenos do passado podem ser encontrados nos vestidos drapeados com aparência emborrachada, sem muito movimento, e nos casacos de ombros arredondados e golas estruturadas. Não que se limitem a essas peças, eles percorrem toda a coleção. Porém, daí para frente, é o estilo de Demna que assume o controle.
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Depois de algumas temporadas mais voltadas ao legado da maison, o estilista disse chega em setembro passado. Aquela coleção, a de verão 2024, foi essencialmente sobre o que ele gosta de criar e o que ele gosta na moda. A desfilada neste domingo (03.03), de inverno 2024, segue o mesmo caminho.
Tem vestidos longos feitos inteiramente de moletons, camisetas ou lingerie. Tem blazers e trench coats usados como vestidos frente única, pendurados pelo pescoço, como avental. Tem blusas que imitam calças jogadas sobre os ombros. E tem ternos masculinos amplos, sem forro nem enchimentos, bem soltos e fluidos.
Uma tendência bem improvável, porém presente em algumas das melhores coleções até agora, é de roupas híbridas, sei lá quantas em uma, um frankenstein de vestir. Teve na Prada, na Fendi, na Undercover, no Dries Van Noten e, agora, na Balenciaga. Em comum a todas elas, está a sensação de acúmulo.
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
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Depois do desfile, Demna falou sobre a sobrecarga de conteúdo que nos distrai de valores reais e humanos. “É uma sinergia de muitas coisas diferentes. E isso representa o mundo em que vivemos, há essa beleza real que esquecemos de notar por causa do tempo que passamos olhando para telas.”
É aqui que o fubá começa a engrossar.
A passarela tinha piso e paredes de monitores digitais. As imagens variavam de paisagens naturais inóspitas, como desertos rochosos e geleiras para florestas cheias de vida, cidades centenárias, metrópoles iluminadas por telões publicitários até uma profusão de janelas, selfies, textos, fotos, vídeos, anúncios sobrepostos em ritmo frenético até que tudo vira estática, sequências numéricas e dados.
Dados capazes de sintetizar aquela realidade natural em outra calculada, programada, sem vida e em preto e branco, embora igualmente acelerada e sobrecarregada a ponto de tornar tudo imperceptível, como pontos de cor microscópicos em uma tela em branco.
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Voltando ao convite personalizado, ele tem relação com os aspectos humanos destacados na coleção. Junto ao objeto randômico, vinha uma espécie de nota fiscal, com o preço do item.
Aliás, várias peças da coleção estavam etiquetadas. Dá para ler como um comentário sobre a mercantilização extrema da moda, mas o diretor jura que é a referência à sua preguiça e distração para cortar as etiquetas.
Segundo Demna, a ideia da nota fiscal era questionar a valorização das coisas. Para ele, o que importa não é a quantia de dinheiro, mas a história daquele objeto – ou o mistério dessa história que nunca conheceremos.
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
A seleção das peças feita pelo próprio diretor criativo é outro reforço para o tema. “O que pode ser mais luxuoso do que a atenção que pude dar a cada pessoa convidada para o desfile?”, perguntou ele, em entrevista após a apresentação.
Durante o processo criativo de inverno 2024 da Balenciaga, Demna estava pensando nas diferenças entre moda e luxo. É um assunto superimportante e atual, porque uma coisa não é sinônimo da outra. A definição de luxo fala de escassez, exclusividade, dinheiro e status. Já a de moda tem a ver com representação individual e coletiva, construção identitária, pertencimento, existência e, sobretudo, expressões criativas transformadoras cultural e socialmente.
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
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O problema é que, em um momento de dominação mercadológica de grandes grupos, o conceito de moda passou a ser confundido – na verdade, substituído – pelo de luxo. Na metade do século 20 e, mais tarde, entre os anos 1990 e 2000, a gente olhava para grandes marcas, como Dior, Chanel ou Gucci, em busca de novidades ou algum tipo de modernidade. E achava. Hoje, parece que só encontramos é a enésima reedição do sapato X, a atualização da silhueta Y ou elucubrações sobre qualquer tema quente escolhido e adaptado por uma equipe de marketing.
Para resumir, cancelaram o risco – financeira e culturalmente. Com isso, cancelaram também partes essencial à moda, vontades, desejos, emoções e identidades humanas. São elas o que nos move adiante, nos faz evoluir. Dá para entender a causa da monotonia e mesmice das semanas de moda dos últimos anos, né?
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
Balenciaga, inverno 2024. Foto: Getty Images
O teto do Demna é de vidro. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Ainda assim e apesar dos pesares, trata-se de um criador disposto a questionar e fazer pensar – não só com discurso, com roupas.
Você pode detestar ele, dizer que tudo o que faz é medonho, sentir repulsa ou raiva pelas campanhas criminosas do fim de 2022, se irritar com as provocações e incoerências dos seus discursos, pode achar que ele é um cocozinho, pode pensar o que quiser.
Só não dá para negar que, ao longo de quase 10 anos à frente da Balenciaga, o estilista criou um estilo próprio, uma silhueta distinta e propôs toda uma outra estética, uma outra beleza, até então pouco representadas na moda. Influenciou muita gente e todo o mercado, mudou a forma de apresentar, vender e comunicar roupas.
Quem existem novos designer com estilos afiados, consistentes e produtos interessantes não se discute. No entanto, a indústria está organizada tão maneira tão rigidamente segura, que são poucos –pouquíssimos – os que conseguem chocar, emocionar ou irritar com intensidade, contundência e relevância. São raros os capazes de chacoalhar o business e os consumidores a ponto de fazê-los questionar o status quo e vislumbrar novas possibilidades.
Se luxo é sobre escassez, está aí um atributo luxuoso de Demna.
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